Excerto retirado do
Manual da Almas Interiores
Manual da Almas Interiores
Compêndio de Opúsculos Inéditos
Pe. Grou
Do Mundo
Que é o mundo? E que deve ele ser para o cristão? Duas questões bem
interessantes para todos quantos desejam pertencer inteiramente a Deus e
assegurar a salvação.
Que é o mundo? É o inimigo de Jesus Cristo, o inimigo do
Evangelho. É esse conjunto de pessoas que, presas às coisas sensíveis, fazendo
consistir nelas a felicidade, têm horror aos sofrimentos, à pobreza, as
humilhações e consideram estas e aqueles, como verdadeiros males de que cumpre
fugir e contra os quais de deve estar garantido, custe o que custar; que, em
contraposição ligam o maior apreço aos prazeres, as riquezas e as honrarias;
reputam umas e outras, verdadeiros bens; os desejam e buscam portanto, com
ardor extremo e sem escolherem os meios; os disputam, invejam e arrebatam uns e
outros; só se estima ou desprezam-se mutuamente, na medida em que os possuem;
em suma, fundam na aquisição e no gozo desses bens todos os seus princípios
toda a sua moral, todo o plano de sua conduta.
O espírito do mundo é, pois, evidentemente oposto ao espírito de
Jesus Cristo e do Evangelho. Jesus Cristo, na oração por Seuseleitos, declara
não orar pelo mundo; anuncia, aos Apóstolos e, nas pessoas destes, a todos os
cristãos, que o mundo os há de odiar e perseguir, como a Ele próprio odiou e
perseguiu. Quer que a seu turno façam eles contínua guerra ao mundo.
Nos primeiros séculos da Igreja, quando quase todos os cristãos
eram santos e a parte restante da humanidade achava-se abismada na idolatria,
fácil tornava-se discernir o mundo, conhecer a gente que se podia frequentar e
a que se devia evitar.
O mundo, então desencadeado contra Jesus Cristo, distinguia-se por
sinais inequívocos. Depois que nações inteiras abraçaram o Evangelho e o
relaxamento se introduziu entre os cristãos, formou-se pouco a pouco no meio
deles um mundo no qual reinam todos os vícios da idolatria, um mundo ávido de
honras, prazeres e riquezas, um mundo cujas máximas combatem diretamente as
máximas de Jesus Cristo.
Mas, como esse mundo professa exteriormente o cristianismo, hoje é
mais difícil discerni-lo. A sua frequentação também se tornou mais perigosa
porque ele disfarça sua má doutrina com mais habilidade, propaga-a com mais
tento, emprega toda a sua sutileza para conciliá-la com a doutrina cristã e,
nesse intuito, enfraquece, suaviza tanto quanto pode o santo rigor do Evangelho
escondendo cuidadosamente, por outro lado, todo o veneno da sua moral.
Daí um perigo de sedução tanto maior porquanto não se percebe e
contra ele não se está em guarda; daí certo espírito de transigência e
adaptação, pelo qual procura-se conciliar a severidade cristã com as máximas do
século sobre a ambição, a cobiça, o gozo dos prazeres; acordo impossível,
condescendências ou atenuações que tendem a lisonjear a natureza, alterar a
santidade cristã e formar consciências falsas. É incrível a que ponto chega o
desconcerto, mesmo entre pessoas que se prezam de ser piedosas e devotas:
desvario num sentido mais difícil de reprimir do que o resultante de uma
conduta abertamente mundana e criminosa, porque não querem reconhecê-lo e a seu
respeito se iludem.
Se quisermos viver nesta terra sem participar da corrupção do
século, só temos um partido a tomar, o de rompermos absolutamente com o mundo
pelo coração e entrarmos a sentir com São Paulo, quando exclamava: O mundo está
crucificado para mim, e eu estou crucificado para o mundo.
Oh! que belas palavras, e quão profundo o sentido que encerram!
A cruz era outrora o suplício mais infame, o suplício dos
escravos.
Dizendo o Apóstolo que o mundo está crucificado para ele, é como
dissesse: Tenho pelo mundo o mesmo desprezo, a mesma aversão, o mesmo horror
que por um vil escravo crucificado pelos seus crimes: não posso suportar-lhe a
vista, ele é para mim objeto de maldição, com o qual toda ligação em todo trato
e toda relação me são interditos.
Nada de exagerado tem, ao invés, apenas justo e legítimo é esse
sentimento de São Paulo, que deve ser o de todo cristão e a razão é evidente: o
mundo crucificou Jesus Cristo, depois de havê-lO caluniado, insultado,
ultrajado; crucifica-O ainda todos os dias: é, pois, justo que o mundo, por sua
vez, esteja crucificado para o discípulo de Jesus Cristo; é justo ter o
discípulo horror ao inimigo capital do Mestre, do seu Salvador, do seu Deus.
Assim a renúncia ao mundo é uma das promessas mais solenes do batismo, uma
condição essencial, sem a qual a Igreja não nos teria admitido entre seus
filhos.
Pensamos nessa promessa?
Pensamos nas obrigações que ela acarreta?
Examinamos até onde deve chegar a nossa renúncia?
A renúncia do cristão a respeito do mundo deve ir tão longe quanto
a renúncia do mundo a respeito de Jesus Cristo.
Esta regra é clara e em face da sua precisão fora impossível nos
enganarmos. Só nos resta aplicá-la em toda a extensão. O mundo tem o seu
evangelho: só temos que tomá-lo numa das mãos e o Evangelho de Jesus Cristo na
outra; só temos que comparar, sobre os mesmos objetos, a doutrina e os exemplos
de um e de outro, só temos que opor Jesus Cristo na Cruz,
no sofrimento, no opróbrio e na nudez, ao mundo cercado e embriagado de honras,
riquezas e prazeres, e dizer a nós mesmos: A quem desejo pertencer?
Eis aí dois inimigos irreconciliáveis, fazendo-se reciprocamente a
guerra mais cruel. A favor de qual deles desejo declarar-me? É-me impossível
ficar neutro, ou tomar o partido de ambos. Se escolho Jesus Cristo e a Sua
Cruz, o mundo me reprova; se me prendo ao mundo e às suas pompas, Jesus Cristo
me rejeita e condena: poderei hesitar? É cristão aquele que hesita sequer um
instante?
Mas, se uma vez nos alistamos sob o estandarte da Cruz, não é
evidente que desde esse momento o mundo se torna inimigo com o qual não há mais
a fazer pazes nem lhe dar tréguas?
Como isso vai longe, ainda uma vez! e como os cristãos seriam
santos se da grandeza de seus compromissos bem se compenetrassem.
Não basta estar o mundo crucificado para nós, é preciso que
consintamos estar também crucificados para o mundo, isto é, que o mundo nos
crucifique como crucificou a Jesus Cristo; nos guerreie do mesmo modo que
guerreou a Jesus Cristo; nos persiga, calunie e ultraje com igual furor; nos
arrebate, finalmente, os bens, a honra, a própria vida.
É mister não só consentirmos em todos esses sacrifícios de
preferência a renunciarmos à santidade cristã, mas também fazer disso motivo de
alegria e triunfo. O discípulo deve gloriar-se de ser tratado como o Mestre: Se
eles me perseguiram, dizia Jesus Cristo a Seus Apóstolos, também vos
perseguirão: é coisa infalível. O mundo não seria o que é, ou os cristãos não
seriam o que devem ser, se escapassem à perseguição do mundo.
Procuramos muitas vezes certificar-nos do nosso estado; quiséramos
saber se somos agradáveis a Deus, se Jesus Cristo nos reconhece como
pertencentes a Ele. Eis um meio bem próprio para esclarecer-nos e dissipar
todas as nossas inquietações: indaguemos se o mundo nos estima e considera, se
fala bem de nós e nos procura. Neste caso não pertencermos a Jesus Cristo. Pelo
contrário, se ele nos censura e ridiculariza, se nos calunia foge de nós, nos
despreza e odeia, oh! que grande motivo de consolação, oh! que poderosa razão
para crermos que pertencemos a Jesus Cristo!
Vejamos, pois, seriamente diante de Deus, o que o mundo é para nós
e o que somos para o mundo. Sondemos as nossas disposições interiores,
estudemos os sentimentos mais profundos do nosso coração: acharemos por certo,
motivo para nossa confusão e humilhação; verificaremos haverem as máximas do
mundo deixado profundos vestígios em nosso espírito e que em muitas
circunstâncias delicadas os nossos juízos se aproximam ainda dos seus;
verificaremos que somos ciosos de sua estima e temeremos seus desprezos; que
gostamos de cultivar e entreter certas relações e veríamos com desprazer os
outros afastarem-se de nós; que temos, em várias ocasiões, condescendências,
atenções, respeitos humanos que nos incomodam peiam e conservam numa espécie de
constrangimento e dissimulação. Veremos, numa palavra, que não somos bem
claramente a favor de Jesus Cristo e contra o mundo.
Mas não desanimemos: triunfar plenamente do mundo, afrontá-lo,
desprezá-lo, achar bom que por sua vez ele nos afronte e despreze, não é obra
de um momento. Exerçamo-nos nas pequenas ocasiões que se apresentam: se Deus
nos ama, jamais deixará de no-las proporcionar e pelas pequenas vitórias
reparemo-nos aos grandes combates. Lembremo-nos, sendo preciso, das palavras de
Jesus Cristo: Tende confiança, eu venci o mundo. Supliquemo-Lhe que nos ajude a
vencer, ou antes, que Ele mesmo vença em nós o mundo e destrua em nossos corações
o reino deste para aí estabelecer o Seu.