Livro de 1932 - 428 págs
Do Aniquilamento
O meu ser está diante de Vós como o que não é. (David)
Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando
nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em
espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos
ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez
por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais
suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para
pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo condenemos a nós mesmos.
Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede
fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos
tais quais somos. Quando mesmo tivéssemos nascido e vivido sempre na inocência,
quando jamais houvéssemos perdido a graça original, outra coisa não seríamos,
por nós mesmos, senão nada; não poderíamos consider-nos de outro modo sem nos
desconhecermos e injustos seríamos pretendendo que diversamente Deus ou os
homens nos tratassem. Que se pode dever ao que nada é? Que pode exigir o que
nada é? Se a sua própria existência é uma graça, também e com razão maior é
tudo quanto tem.
Há, portanto, injustiça formal da nossa parte em recusarmos ser tratados
e tratar-nos a nós mesmos como verdadeiros nadas.
Diz-se nada custar e ser justa essa confissão em relação a Deus;
mas que assim não é a respeito dos homens, porquanto estes, nada sendo, como
nós, não têm título algum para obrigar-nos a tal confissão e às suas
consequências. A confissão nada custa em relação a Deus, se nos limitamos a
fazê-la de boca; porém, quando faz-se mister procedermos de acordo com ela,
deixarmos que Ele se arrogue e exerça sobre nós todos os direitos que Lhe
pertencem, consentirmos em que disponha ao Seu talante de nosso coração, de
todo o nosso coração, de todo o nosso ser, custa-nos infinitamente e com grande
dificuldade não chamamos ser injustiça. Ele, todavia, poupa a nossa fraqueza,
não usa dos Seus direitos com todo o rigor, jamais nos expõe a certas provas
aniquiladoras, sem ter obtido o nosso consentimento.
Quanto aos homens, concordo não terem por si mesmos domínio algum
sobre nós e que injusto é da sua parte qualquer desprezo, humilhação ou
ultraje. Mas nem por isso temos direito de nos queixarmos dessa injustiça,
porque no fundo não é injustiça a nós, que nada somos, a quem nada é devido,
mas para com Deus, cujo mandamento violam desprezando-nos, humilhando-nos,
ultrajando-nos. É, pois, o Senhor quem deve ressentir-Se da injúria
que Lhe fazem maltratando-nos e não nós, que em tudo quanto nos acontece não
devemos ser sensíveis senão à injúria feita a Deus. Meu próximo despreza-me;
não tem razão, porque não é mais do que eu e Deus lho proíbe. Mas não terá ele
razão porque eu sou verdadeiramente digno de estima, porque em mim nada há
merecedor de desprezo? Não, porque se ele arrebata meus bens, mancha a minha
reputação, atenta contra a minha vida, é certamente culpado e muito culpado
para com Deus; mas será também para comigo? Estarei autorizado a querer-lhe
mal, a vingar-me?
Não: porque tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence
propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se
assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos
acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos
queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos
alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que nos falecem, de em tudo começarmos
sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos
e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne.
Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo
faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em
suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor.
Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a
Seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo,
nada tendo, nada pretendendo.
Isto como já se disse, seria justo, quando mesmo tivéssemos conservado a
nossa primeira inocência. Mas, se nascemos culpados, se estamos inteiramente
cobertos de pecados pessoais, se contraímos infinitas dívidas para com a
justiça divina, se merecemos não sei quantas vezes a condenação eterna, não é
para nós castigo demasiado brando só sermos tratados como nadas? E
não deve o pecador colocar-se infinitamente abaixo do que nada é? Se qual for a
provação imposta a ele por Deus, sejam quais forem os maus tratos suportados do
próximo, terá direito de se queixar? Poderá acusar de rigor excessivo a Deus ou
de injustiça os homens? Não deve, antes, considerar-se muito feliz em resgatar,
com alguma pena temporal, tormentos eternos? Se a religião não é uma ilusão, se
é verdade o que a fé nos ensina acerca do pecado e dos suplícios que lhe estão
reservados, como pode entrar no espírito de um pecador - a quem Deus se dispõe
a perdoar - que não merece tudo quanto se possa suportar de males neste mundo,
embora dure sua vida milhões de séculos? Sim, é injustiça soberana, é
monstruosa ingratidão de quem ofendeu a Deus (e quem de nós não O ofendeu?) não
aceitar de boamente, em reconhecimento, por amor, por dedicação aos interesses
de Deus, tudo quanto de sofrimentos, se essas humilhações aprouver à divina
bondade enviar-lhe. E que será se tais sofrimentos, se essas humilhações
passageiras são, não só a compensação do inferno, mas o preço de uma felicidade
eterna, o preço da posse eterna de Deus; se no céu seremos glorificados na
proporção do nosso aniquilamento aqui na terra? Teremos ainda horror a nos
aniquilarmos? Pensaremos que é nos fazer mal, quando, por sermos
pecadores e para emergirmos do nada, exige-se a renúncia completa do nosso eu,
com a promessa de uma recompensa que sempre durará?
Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a
natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é
até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: Tomai sobre vós o
meu jugo, disse Ele; é doce e leve. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o
suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por Seu
amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e
torna-o preferível e a todos os prazeres.
A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma
das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das
revoltas interiores.
Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do
sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a
acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o
repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o
nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas
também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas.
O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso
eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer,
no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a
imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento.
Nos desprezos, nas calúnias, humilhações, o que no-las torna tão
duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados,
considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e
do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos
torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para
aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os
artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas
mortificações que se apresentarem.
Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se
pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente;
para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são
indiferentes.
A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no
serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em Sua presença, de
conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se
um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às
consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-Se de nós;
esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-Lo voltar; ficamos abatidos
e desolados, se o afastamento perdura muito. Por isso também temos falsos
alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-se-nos estarmos mal com Deus,
porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas
comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às
nossas leituras, orações e outras práticas. Sirvamos a Deus com
espírito de aniquilamento; sirvamo-Lo por Ele e não em atenção a nós;
sacrifiquemos os nossos interesses à Sua glória e ao Seu bel-prazer; então,
estaremos sempre contentes com o Seu modo de tratar-nos, persuadidos de que
nada merecemos e de ser imensa a bondade de Sua parte, não digo aceitando,
porém suportando os nossos serviços.
Nas grandes tentações contra a pureza, a fé, a esperança,o que há
de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o
medo de perder-nos, ofendendo-O. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais
do que a Sua glória.
Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em
tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana,
transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões.
Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos... Encontraremos a
paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos.
Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma
verdadeiramente aniquilada.