Fontes Franciscanas
III
Santo Antônio de Lisboa
Volume I
Biografia e Sermões
pelo Frei Henrique Pinto Rema, OFM
SERMãO DO DOMINGO DA SEPTUAGÉSIMA
Desde o século IX que no Ocidente o Ano Litúrgico começa no primeiro Domingo do Advento. O Doutor Evangélico escolhe a Septuagésima para iniciar o seu Opus muito provavelmente por nesta semana se ler o Genesis, primeiro livro da Bíblia, consoante consta da reforma do Papa Inocêncio III, entre 1213 e 1216, reforma essa que mais tarde foi adotada pelo Ordo franciscano. Cf. Atas 1981 p.113.
Os sermões da Septuagésima ao Pentecostes devem ter sido redigidos em definitivo talvez em 1224 ou, mais provavelmente, no biênio 1223-1224. Cf. Atas 1981 p.128.
Primeiro Evangelho, na Septuagésima:
O Reino dos Céus é semelhante a um pai de família.
Divide-se em duas cláusulas.
Intróito da Missa:
Rodearam-me.
Epistola:
Ignorais acaso que os corredores do estádio.
Ignorais acaso que os corredores do estádio.
Fato histórico:
No princípio criou Deus o céu e a terra.
No princípio criou Deus o céu e a terra.
1 - Na primeira cláusula deste Evangelho podem-se encontrar pelo menos os seguintes argumentos de Sermões ou assuntos de prédicas:
Em primeiro lugar, o sermão para formar o coração do pecador acerca das propriedades do tijolo:
Pega um tijolo.
Um sermão acerca dos sete artigos da fé:
No primeiro dia, disse Deus: Faça-se a luz.
Um sermão para o Natal do Senhor:
No primeiro dia, disse Deus: Faça-se luz.
Um sermão acerca do Batismo e daqueles que violam as promessas nele feitas:
Faça-se o firmamento.
Um sermão acerca da Paixão de Jesus Cristo e da fé da Igreja:
Produza a terra.
2 - Na segunda cláusula do Evangelho:
Em primeiro lugar um sermão aos penitentes sobre o coração contrito:
Entrando Saul.
Um sermão contra os ricos:
O Senhor preparou um verme.
Um sermão aos que se confessam:
Faça-se firmamento.
Um sermão aos penitentes e aos claustrais:
Quem pôs o ónagro em liberdade.
Um sermão acerca do amor de Deus e do próximo:
Façam-se dois luzeiros.
Desta mesma sentença se pode elaborar um sermão para a festa dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo:
Pedro foi o luzeiro maior, que presidiu ao dia, isto é, aos judeus:
S. Paulo o luzeiro menor, que presidiu à noite, isto é, aos gentios.
Um sermão aos contemplativos e acerca da propriedade da ave:
O homem nasce para o trabalho.
Um sermão acerca da dupla glorificação:
Da alma e do corpo: Será mês de mês
Exórdio. Sermão para formar o coração do pecador
1. No princípio criou Deus o céu e a terra 1.
A Ezequiel2, ou seja, ao pregador3, fala o Espírito Santo: E tu, filho do homem, pega num tijolo e desenha nele a cidade de Jerusalém. O tijolo, pelas quatro propriedades que possui, significa o coração do pecador4. Forma-se de duas tábuas5, é levado a uma extensão determinada, consolida-se pelo fogo, torna-se vermelho. Também o coração do pecador deve formar-se entre as duas tábuas de ambos os Testamentos. De fato, no meio dos montes, isto é, dos dois Testamentos, como diz o Profeta6, passarão as águas, a saber, as águas da doutrina7. E diz bem: forma-se, pois que o pecador, deformado pelo pecado, recebe forma pela pregação de ambos os Testamentos. O tijolo é levado a uma extensão determinada, já que a amplidão da caridade alarga o coração estreito do pecador. Donde a palavra do Salmo8: O teu mandamento é imensamente grande; e a caridade é a mais larga do que o oceano. O tijolo consolida-se pelo fogo, uma vez que o espírito, cheio de humores e dissolúvel, através do fogo da tribulação se consolida, a fim de que não se derrame no amor das coisas temporais, porque, na frase de Salomão9, o que a fornalha faz ao ouro, a lima ao ferro, o mangual ao grão, isto faz a tribulação ao justo. O tijolo torna-se vermelho. Nisto se nota a audácia do zelo santo, de que fala o Profeta10: O zelo da tua casa, isto é, da Igreja ou da alma fiel, devorou-me. E Elias11: Ardo de zelo pela casa de Israel.
No tijolo, portanto, notam-se quatro coisas: A ciência de cada um dos Testamentos, para instrução do próximo; a abundância da caridade, para o amar; a paciência da tribulação, para suportar o opróbrio por amor de Cristo; a audácia do zelo, para dar cabo de todo e qualquer mal. Pega, conseguintemente, num tijolo e desenha nele a cidade de Jerusalém.
2. A Jerusalém espiritual é tripla: a primeira é a Igreja militante; a segunda, a alma fiel; a terceira, a pátria celeste12. Pegarei, portanto, em nome do Senhor, num tijolo, isto é, no coração de qualquer ouvinte, e desenharei nele a tripla cidade, isto é, os artigos (da fé) da Igreja, as virtudes da alma, os prêmios da pátria celeste, sob o número sete13, trazendo à colação sentenças de ambos os Testamentos, e expondo-as.
I – Os sete dias da criação e os sete artigos da fé
3. No princípio criou Deus o céu e a terra, etc. Entenda-se o continente e o conteúdo14. Deus Pai, no princípio, ou seja, no Filho, criou e recriou15. Criou em seis dias, descansando ao sétimo; recriou com seis artigos da fé, prometendo no sétimo o descanso eterno.
No primeiro dia disse Deus: Faça-se a luz, e a luz foi feita16. O primeiro artigo de fé é a Natividade. No segundo dia, disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas e separe umas águas de outras águas17. O segundo artigo da fé é o Batismo. No terceiro dia, disse Deus: Produza a terra erva verde e que dê semente, e árvores frutíferas que produzam fruto segundo a sua espécie18. O terceiro artigo é a Paixão. No quarto dia, disse Deus: Façam-se dois grandes luzeiros no firmamento19. O quarto artigo é a Ressurreição. No quinto dia, fez Deus os voláteis no ar20. O quinto artigo é a Ascensão. No sexto dia, disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e inspirou no seu rosto o sopro de vida, e o homem tornou-se alma vivente21. O sexto artigo é o envio do Espírito Santo. No sétimo dia, Deus descansou de todas as obras que tinha feito22. O sétimo artigo é a vinda a juízo, em que descansaremos de todas as nossas obras e fadigas.
Invoquemos, portanto, o Espírito Santo, amor e união entre o Pai e o Filho, para que nos conceda unir e concordar de tal modo os sete dias e sete artigos, que daí lhe provenha honra e edificação para a sua Igreja.
4. No primeiro dia, disse Deus: Faça-se a luz, etc. Esta luz é a sabedoria de Deus Pai a iluminar todo o homem que vem a este mundo23, e que habita uma luz inacessível24. Dele diz o Apóstolo aos Hebreus25: Ele é o resplendor e a figura da sua substância; e o Profeta26: Na tua luz veremos a luz; e no livro da Sabedoria27: A sabedoria é o candor da luz eterna. Desta, pois, disse o Pai: Faça-se a luz, e a luz foi feita. Isto mais abertamente glossa S. João, ao referir: O Verbo se fez carne e habitou entre nós28. E Ezequiel29, com o mesmo pensamento, mas com diferentes palavras, afirma: Fez-se sentir sobre mim a mão do Senhor, isto é, o Filho, no qual e pelo qual tudo foi feito. A luz, por conseguinte, que era inacessível e invisível, fez-se visível na carne, iluminando o que se sentava nas trevas e na sombra da morte30. Sobre esta iluminação conta o quarto evangelista31 que Jesus cuspiu em terra, fez lodo e limpou os olhos do cego de nascença. A saliva, que desce da cabeça do Pai, significa a sabedoria32. A cabeça de Cristo, diz o Apóstolo, é Deus33. A saliva une-se, portanto, ao pó, isto é, a divindade une-se à humanidade, a fim de que se faça luz nos olhos do cego de nascença, que é o gênero humano, feito cego no primeiro pai34. Disto se deduz claramente que no dia em que Deus pronunciou: Faça-se a luz, nesse mesmo dia, isto é, no domingo, a Sabedoria de Deus Pai, o nascido da Virgem Maria, afugentou as trevas existentes sobre a face do abismo35, quer dizer, do coração humano. Por isso, nesse mesmo dia, canta-se na Missa da Luz36: A luz refulgirá, etc37; e no Evangelho38: Uma luz do céu rodeou os pastores.
5. No segundo dia disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas e separe umas águas de outras águas39. O firmamento no meio das águas é o batismo a dividir as águas superiores das inferiores, isto é, os fiéis dos infiéis. E com razão se dizem águas inferiores, porque se dirigem a coisas inferiores e se abandonam diariamente às suas fraquezas. Porém, as águas superiores significam os fiéis, que, segundo o Apóstolo40, devem procurar as coisas que são do alto, onde está Cristo sentado à direita de Deus.
E nota que estas águas se chamam cristalinas, pois o cristal, atingido ou ferido pelos raios do sol, transmite centelhas ardentes41. Assim, o varão fiel, iluminado pelos raios do sol, deve emitir centelhas de reta pregação e de boas obras que inflamem o próximo. Mas, ai! ai! rompido o firmamento, as águas superiores precipitar-se-ão no mar morto, entrando juntamente com os mortos. Daí a afirmação de Ezequiel 42: Estas águas que saem do túmulo da areia oriental e que descem para a planície do deserto, entrarão no mar. O túmulo significa a contemplação, na qual, como em túmulo, se sepulta e esconde um morto Cf. 43. O homem contemplativo, morto para o mundo, sepulta-se e esconde-se da conturbação dos homens. Daí o dizer Job 44: Entrarás com abundância no sepulcro, como se recolhe um monte de trigo a seu tempo. O justo, na abundância da graça que lhe foi conferida, entra no sepulcro da vida contemplativa, tal como o monte de trigo entra a seu tempo no celeiro. Sacudidas, pois, as palhas dos bens temporais, o seu entendimento põe-se no celeiro da plenitude celeste; e uma vez ali posto, sacia-se com a sua doçura.
6. E observa que este túmulo se chama areia oriental. A areia designa a penitência. Por isso, lê-se no Êxodo 45que Moisés escondeu na areia um egípcio morto. Efetivamente, o justo deve matar o pecado mortal na confissão e escondê-lo depois na satisfação da penitência, a qual deve sempre olhar para aquele oriente de que fala Zacarias 46: Eis o homem cujo nome é Oriente.
Diga-se: Estas águas que saem do túmulo da areia oriental, etc. Ai! quantas águas, quantos religiosos saem do túmulo da vida contemplativa da areia da penitência, do oriente da graça! Saem, digo, da casa paterna com Dina e Esaú 47, saem da face divina com o diabo e Caim 48, saem da escola de Cristo com o traidor Judas, portador da bolsa 49, e descem para a planície do deserto, para o campo da solidão de Jericó, onde, como refere Jeremias, Nabucodonosor, isto é, o diabo, na largueza dos bens temporais, arranca os olhos a Sedecias. Este é o pecador, privado da luz da razão, ao qual matam os próprios filhos, ou seja, o diabo lhe destrói as próprias boas obras 50.
Nesta planície, Caim, que se interpreta possessão51, matou Abel, que se interpreta luto52, porque a possessão da transitória abundância mata o luto da penitência. Descem, portanto, as águas para a planície do deserto. Por isso, diz-se no Gênesis 53 que tendo partido do oriente para o ocidente, encontraram uma planície na terra de Senaar. Do oriente da graça para o ocidente da culpa partem os filhos de Adão, e logo que encontram a planície do gozo mundano, habitam na terra de Senaar, que se interpreta fedor54. No fedor, pois, da gula e da luxúria edificam a casa do seu viver, não como cristãos, mas como pagãos que em vão receberam o nome do seu Deus, como diz o Senhor no Êxodo 55: Não tomes o nome do teu Deus em vão. Tomam em vão o nome de Deus os que trazem consigo, não a realidade do nome, mas o nome sem a realidade; e assim entram no mar, isto é, na amargura dos pecados, para desta chegarem depois à amargura dos tormentos.
Mas Deus fez o firmamento do Batismo no meio das águas para as dividir uma das outras; mas estes pecadores, como diz Isaías 56, transgrediram as leis, mudaram o direito, romperam a aliança eterna. Por isso, a maldição devorará a terra, e pecarão os seus habitantes; e por esta causa se tornarão insensatos os seus cultivadores. Transgridem as leis da letra e da graça, porque não querem guardar nem a lei da letra, como servos, nem a lei da graça, como filhos; mudam o direito natural, que é: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti 57; rompem a aliança eterna que contraíram no Batismo. Por isso, a maldição da soberba devorará a terra, isto é, os terrenos, e os seus habitantes pecarão com o pecado da avareza; aos quais se diz no Apocalipse 58: Ai dos que habitam sobre a terra!; e se tornarão insensatos os que a cultivam com o pecado da luxúria, que é insensatez e demência.
7. No terceiro dia, disse Deus: Produza a terra erva verde 59 etc. A terra, de tero, teris (esmagar) 60, é o corpo de Cristo Cf. 61, esmagado, na frase de Isaias 62, por causa dos nossos pecados; e esta terra foi escavada e lavrada por pregos e pela lança. Dela se diz: A terra escavada dará frutos no tempo desejado. A carne escavada de Cristo deu o reino celeste 63; produziu erva verde nos Apóstolos, semente de pregação nos mártires e árvores a darem frutos nos confessores e virgens. A fé, na primitiva Igreja, era como que erva tenra; por isso, diziam os Apóstolos nos Cânticos 64: A nossa irmã, isto é, a primitiva Igreja, é pequenina pelo número de fiéis, e não tem seios com que aleitar os seus filhos. De fato, ainda não fora engravidada pelo Espírito Santo. E por isso diziam: Que faremos à nossa irmã no dia do Pentecostes, em que deverá falar a linguagem do Espírito Santo? Desta fala disse o Senhor no Evangelho: Ele vos ensinará todas as coisas e sugerir-vos-á, isto é, subministrar-vos-á65, todas as coisas 66.
8. No quarto dia, disse Deus: Façam-se dois luzeiros no firmamento. No firmamento, isto é, em Cristo, já glorificado pela ressurreição 67, existiram dois luzeiros: a claridade da ressurreição, que se nota no sol, e a incorruptibilidade da carne, que se nota na lua, tendo em conta o estado do sol e da lua antes da queda do primeiro pai, por causa de cuja desobediência todas as criaturas padecem detrimento. Donde a palavra do Apóstolo 68: Todas as criaturas gemem e estão como que com dores de parto até agora.
9. No quinto dia, fez Deus as aves do céu; com isto concorda fielmente o quinto artigo, a saber, a Ascensão, em que o Filho de Deus, semelhante a uma ave, com a carne assumida, voou para a direita do Pai. Por isso, diz ele mesmo em Isaias 69: Eu chamo do oriente uma ave, e de uma terra longínqua o varão da minha vontade. Chamo do oriente, ou seja, do monte das Oliveiras, que se encontra a oriente, do qual se diz: O que sobe sobre o céu do céu 70, isto é, à igualdade do Pai Cf. 71; uma ave, isto é, o meu Filho 72; e duma terra longínqua, isto é, do mundo73, o varão da minha vontade, que disse: O meu alimento é fazer a vontade do meu Pai, que me enviou 74
10. No sexto dia, disse Deus: Façamos o homem, etc. O sexto artigo da fé é o envio do Espírito Santo. Neste envio, a imagem de Deus, deformada e deturpada no homem, é reformada e iluminada mediante a inspiração do Espírito Santo, que inspirou no rosto do homem o sopro da vida 75, como se refere nos Atos dos Apóstolos 76: E, de repente, veio do céu um estrondo, como de vento veemente.
E nota que bem se diz veemente o Espírito Santo, por tirar o ai eterno, ou por levar para as alturas o espírito. Daí a palavra do profeta David 77: Gravada está sobre nós, Senhor, a luz do teu rosto. O rosto do Pai é o Filho; assim como pelo rosto se conhece uma pessoa, assim pelo Filho conhecemos o Pai. A luz, pois, do rosto de Deus é o conhecimento do Filho e a iluminação da fé, que foi assinalada e impressa, como um caráter, no dia de Pentecostes nos corações dos Apóstolos, e desta forma o homem se tornou alma vivente 78.
11. No sétimo dia, descansou Deus de todas as suas obras. E a Igreja, no sétimo artigo, descansará de todo o trabalho e suor, quando Deus enxugar toda a lágrima dos seus olhos 79, isto é, tirar toda a causa do choro 80; então ela será louvada pelo seu esposo e merecerá ouvir: Dai-lhe do fruto das suas mãos; e as suas obras louvem-na na assembléia do juízo 81, quando ela, juntamente com os seus filhos, ouvir o cicio da aura ligeira82: Vinde, benditos etc. 83
Com estes sete dias e sete artigos da fé, brevemente descritos no tijolo, apressemo-nos a descrever moralmente as seis virtudes da alma fiel e as seis horas da leitura evangélica, fazendo-as concordar com o dinheiro e com o sábado.
II – Os seis dias da criação e as seis virtudes da alma
12. A segunda Jerusalém, isto é, a alma fiel, em S. Mateus 84, chama-se vinha. Vejamos brevemente de que modo se deve cavar com a enxada da contrição e podar com a foice da confissão, e como se deve sustentar com as estacas da satisfação.
Deus disse: Faça-se a luz, e a luz foi feita 85. Porque, como diz Ezequiel 86, a roda estava na roda, isto é, o Novo Testamento no Velho87, e a cortina arrasta a cortina 88, isto é, o Novo Testamento expõe o Velho, concordaremos o Novo com o Velho, expondo moralmente as seis horas do Evangelho com as obras dos seis dias.
13.No primeiro dia, portanto, disse Deus: Faça-se a luz, e a luz foi feita. Escuta a concordância da primeira hora: Assemelha-se o reino dos céus ao pai de família, que saiu muito cedo 89 etc.
Nota que são seis as virtudes da alma: o arrependimento do coração, a confissão de boca, a satisfação de obra, o amor de Deus e do próximo, o exercício da vida ativa e contemplativa, a consumação da perseverança final. Quando sobre a face do abismo, isto é, do coração90, há as trevas do pecado mortal, o homem sofre a ignorância do conhecimento divino e da própria fragilidade, e não sabe discernir entre o bem e o mal. Este é o tríduo de que se fala no Êxodo 91: na terra do Egito, durante três dias, houve trevas que se podiam apalpar; em toda a parte onde habitavam os filhos de Israel havia luz. Os três dias são o conhecimento de Deus e de si mesmo e o discernimento do bem e do mal. Para os dois primeiros suplica S. Agostinho 92: Senhor, conheça-me eu a mim e a ti; do terceiro se diz no Gênesis 93 que a árvore, isto é, o discernimento da ciência do bem e do mal, estava no paraíso, isto é, no entendimento do homem.
O primeiro dia ilumina-nos para conhecer a dignidade da nossa alma. Daí a palavra do Eclesiástico 94: Filho, guarda na mansidão a tua alma e honra-a. Mas o homem miserável, constituído em honra, não o compreendeu: comparou-se aos jumentos 95. O segundo ilumina-nos para conhecer a própria fraqueza. Daí o dizer de Miquéias96: A tua humilhação achar-se-á no meio de ti. No meio de nós está o ventre, vaso de imundícies, em cuja consideração a nossa soberba se humilha, a arrogância se deprime, a vanglória desaparece. O terceiro ilumina-nos para discernir entre o dia e a noite, a lepra e a não lepra, o puro e o impuro, conhecimento que nos é muito necessário. Pois o mal é vizinho do bem, sob o mesmo erro. Muitas vezes o justo paga pelo pecador 97.
Mas, nestes três dias, as trevas são palpáveis na terra do Egito e sobre a face do abismo; porém, onde quer que há verdadeiros filhos de Israel, há luz, a respeito da qual Deus disse: Faça-se a luz. Esta luz é o arrependimento do coração, que ilumina a alma, mostrando o conhecimento de Deus, a consciência da sua própria fraqueza e o discernimento entre o homem bom e o mau.
14. Esta é a primeira manhã e a primeira hora em que saiu o pai de família, isto é, o penitente, a contratar operários para trabalhar na sua vinha, como se diz no Evangelho do presente domingo, em cujo Intróito da missa se canta: Rodearam-me, e lê-se a Epístola de S. Paulo aos Coríntios 98: Não sabeis que os que correm no estádio, etc.
Desta manhã diz o Profeta 99: De manhã, isto é, no alvorecer da graça, me porei diante de ti, direito e ereto, tal como me fizeste direito e ereto. Deus, de fato, como diz S. Agostinho 100, direito e ereto, fez o homem direito e ereto para que só tocasse com os pés a terra, isto é, exigisse da terra só o estrito necessário. Desta manhã se diz em S. Marcos 101: E muito de manhã, no primeiro dia da semana, vêm ao túmulo, nascido já o sol. E nota que diz bem: no primeiro diz da semana, pois ninguém pode vir ao túmulo, isto é, à consideração da sua morte 102, a não ser que antes repouse da solicitude dos bens temporais 103. Na manhã da contrição, diz o Profeta 104, matarei, isto é, reprimirei, todos os pecadores da terra, isto é, todos os movimentos da minha carne. Quem é esta, diz da alma penitente o Esposo, que vai caminhando como a aurora quando se levanta105? Assim como a aurora é o início do dia e o fim da noite, assim a contrição é o fim do pecado e o início da penitência. Daí o dizer do Apóstolo 106: Outrora fostes trevas; agora, porém, sois luz no Senhor; e noutro lugar: A noite passou e o dia aproximou-se 107.
15. Portanto, à primeira luz e ao romper da aurora sai o pai de família para tratar da vinha. Dela refere Isaías108: Foi adquirida uma vinha para o amado no corno filho do azeite 109; cercou-a duma sebe, e tirou dela as pedras, e edificou uma torre no meio, e construiu na mesma torre um lagar e plantou-a de bacelo escolhido. Uma vinha, isto é, a alma 110, foi adquirida para o amado, isto é, em honra do amado: no corno, isto é, na potência111 da Paixão; filho do azeite, isto é, da misericórdia, não pelas obras da justiça que nós fizemos 112, salvou a sua própria vinha, que cercou a sebe da lei escrita e da lei da graça; dela escreve Salomão nas Parábolas 113: O que desfaz a sebe, isto é, destrói a lei, mordê-lo-á a cobra, isto é, o diabo114, que ama as sombras 115, ou seja, os pecadores. Por isso, diz Job 116: Dorme à sombra, quer dizer, descansa na mente coberta de sombras, no esconderijo do canavial, isto é, no engano do hipócrita, e em lugares úmidos, isto é, nos luxuriosos 117.
Segue: E tirou dela as pedras, ou seja, a dureza do pecado; edificou a torre da humildade, ou seja, a parte superior da razão, no meio dela; e nela construiu o lagar da contrição, de que se espreme o vinho das lágrimas. E, desta forma, com os exemplos e doutrina dos santos plantou-a de bacelo escolhido. Para ela o pai de família deve muito cedo assalariar operários, a saber, o amor e o temor de Deus, que bem a cultivem.
16. Igualmente desta manhã se lê no primeiro livro dos Reis 118 que Saul, tendo entrado no meio do acampamento dos filhos de Ámon, na vigília da manhã, feriu Ámon, até que o dia aqueceu. Saul significa o penitente, ungido com o óleo da graça. Este deve na vigília matutina, isto é, de coração contrito, penetrar no meio do acampamento dos filhos de Ámon, que se interpreta água paterna 119 e significa os movimentos da carne, que desde o primeiro pai, como água fluente, chegaram até nós. A estes deve Saul ferir, até que o dia aqueça, isto é, até que o calor da graça ilumine o entendimento e o aqueça depois de iluminado.
Desta manhã se lê ainda no Profeta Jonas 120 que o Senhor preparou um verme ao romper da alvorada, e feriu a hera e ela secou. A hera, que por si só não pode elevar-se às alturas, mas, agarrando-se aos ramos de qualquer árvore 121, se dirige aos lugares mais altos, significa o rico deste mundo, que se eleva ao céu, não por si, mas pelas esmolas aos pobres, como se eles fossem os seus braços; daí a palavra do Senhor do Evangelho122: Granjeai amigos com as riquezas da iniqüidade, isto é, da desigualdade123, para que quando vierdes a precisar, vos recebam, etc. Esta hera, ao romper da alvorada, isto é, ao surgir da graça ou no coração contrito, com o dente dum verme, ou seja, com o remorso da consciência, é ferida e cortada, a fim de que, ao cair em terra, isto é, ao considerar-se terra, seque e se considere vil, dizendo com o Profeta 124: Desfaleceu o meu coração, quer dizer, a soberba do meu coração, e a minha carne, isto é, a minha sensualidade.
Depois de saboreadas estas coisas sobre o primeiro dia e a primeira manhã da contrição, passemos ao segundo dia e à terceira hora da confissão.
17. No segundo dia, disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas, que separe umas águas de outras águas 125. O firmamento é a confissão, que firmemente retém o homem e o impede de se perder nos prazeres. Por isso, reprova o Senhor a alma pecadora, privada deste firmamento, por boca de Jeremias 126: Até quanto te debilitarão os prazeres, filha vagabunda? E por Isaías 127: Percorre a terra como um rio, filha do mar, porque daqui por diante já não tens cintura. A alma miserável diz-se filha do mar. Ela, como da mama do diabo, suga a voluptuosidade do mundo, que sabe a doce, mas gera sempiterna amargura. Daí a afirmação de S. Tiago 128: A concupiscência dá à luz o pecado; e o pecado, depois de ter sido consumado, gera a morte. A esta alma se diz: Percorre a terra como um rio; como se dissesse: Cinge-te com a cintura da confissão e aperta os teus vestidos, para que não caiam nas imundícies; e não queiras passar sobre a abundância dos bens terrenos, onde muitos perigaram, mas passa através da indigência e angústia da pobreza, pois que através do ribeiro se passa com segurança de ânimo. Mas a alma pecadora não tem cintura, não possui o firmamento da confissão; deste se escreve: Faça-se o firmamento no meio das águas, que separe umas águas de outras águas.
As águas superiores são as torrentes da graça; as inferiores, as torrentes da concupiscência 129, que devem estar debaixo do homem. Por outras palavras: O entendimento do justo tem águas superiores, isto é, a razão, que é a força superior da alma 130, a qual provoca o homem ao bem; e tem águas inferiores, isto é, a sensualidade, que tende sempre à queda. O firmamento da confissão, portanto, divida as águas superiores das inferiores, a fim de que o confitente, saindo de Sodoma e subindo às montanhas, não olhe para trás, como a mulher de Lot, e se converta em estátua ou rocha de sal 131, que os animais, isto é, os demônios, consomem, lambendo-o com grande avidez. Saindo também do Egito com os verdadeiros israelitas, rumo à terra de promissão, não escolha para seu guia a própria vontade, e não volte às panelas das carnes 132 e aos pepinos e às cebolas dos egípcios, isto é, aos desejos dos carnais.
Faça-se, portanto, por favor, um firmamento no meio das águas, de modo que, dada a garantia ao confessor de firme propósito de não recair, mereça na própria confissão, como se fosse na terceira hora, inebriar-se com o mosto do Espírito Santo juntamente com os Apóstolos, e, como se fosse um odre tornado novo por meio da confissão, mereça encher-se de vinho novo. Se, pois, como diz o Senhor 133, for posto vinho novo, o vinho do Espírito Santo, no odre velho dos maus dias, não só o odre se romperá, mas também o vinho se derramará, como aconteceu ao endurecido traidor Judas 134, que, semelhante a odre suspenso pelo pescoço, rebentou o ventre pelo meio, e as vísceras, que tinham bebido o veneno da avareza, se espalharam em terra.
E bem se chama a confissão hora terceira, na qual o verdadeiro confitente, como o pai de família, cultiva a vinha da sua alma. Em três coisas, pois, se deve confessar culpável: Porque ofendeu o Senhor, se matou a si mesmo, escandalizou o próximo, não dando a cada um a devida justiça: honra a Deus, vigilância a si mesmo, amor ao próximo. Por isso, no Intróito da missa de hoje, chora com as palavras 135: Rodearam-me gemidos de morte, porque ofendi a Deus; as dores do inferno rodearam-me, porque incorri em pecado mortal; e na minha tribulação, com que sou atribulado, porque escandalizei o próximo, invoquei o Senhor de coração contrito; e ele ouviu desde o seu santo templo, isto é, desde a sua humanidade, em que habita a divindade, a minha voz, a voz da minha confissão.
18. No terceiro dia disse Deus: Produza a terra erva verde, que dê semente segundo a sua espécie, cuja semente esteja nela mesma sobre a terra 136. Observa que no terceiro dia se nota a satisfação da penitência, que consiste em três obras: oração, jejum e escola, que se verificam nas três partes enunciadas.
Diga-se, portanto: Produza a terra, etc. A erva verde significa a oração. Por isso, diz Job 137 do penitente: Quem pôs o ónagro em liberdade e quem soltou as suas prisões? Eu dei-lhe uma casa no deserto e os seus tabernáculos na terra estéril. Ele despreza a multidão da cidade e não ouve a voz do exator. Estende a vista pelos montes onde pasta e anda buscando tudo o que está verde. O ónagro – de ônus (carga) e ager (campo)138 – significa o penitente que no campo da Igreja suporta o peso da penitência. A este põe o Senhor em liberdade e solta as cadeias quando, livre da servidão do diabo e das cadeias dos pecados, lhe permite se vá embora. Por isso, o Senhor diz em S. João 139 aos Apóstolos: Soltai-o e deixai-o ir.
Dá-lhe Deus casa na solidão do entendimento e os tabernáculos da vida ativa, nos quais milita na terra estéril do viver mundano. E assim, este penitente despreza a multidão da cidade, de que diz o Senhor por boca do Profeta 140: Eu sou o Senhor e não mudo e não entro na cidade; e David 141: Vi na cidade a iniquidade, quanto a Deus, e a contradição, quanto ao próximo. E não ouve a voz do exator. O exator é o diabo, que ofereceu uma vez a moeda do pecado ao primeiro pai e agora não a cessa de exigir todos os dias com usura. O penitente não ouve a voz deste exator quando não obedece à sugestão 142. Ou então, o exator é o ventre, que diariamente exige com clamor o tributo à gula, mas o penitente de forma alguma o ouve, porque se lhe obedece, não é por prazer, mas por necessidade.
Este ónagro estende a vista pelos montes onde pasta, porque posto em excelência de vida 143, olhando em redor, encontra os pastos da Sagrada Escritura 144, dizendo com o Profeta 145: Colocou-me num lugar de pastos. E, desta forma, na oração devota procura verdura, a fim de chegar por meio dos pastos da leitura sagrada a apanhar as verduras da oração devota, da qual se diz: Produza a terra erva verde.
19. Segue: E dê semente. Por esta significa-se o jejum. Donde a afirmação de Isaías 146: Bem-aventurados vós os que semeais sobre as águas, atando a pata do boi e do asno. Semeia sobre as águas aquele que ajunta à oração e à compunção das lágrimas o jejum, e desta forma ata com as cadeias dos preceitos147 a pata do boi, isto é, o afeto do espírito, e do asno, isto é, do corpo. Por isso, diz o Senhor: Este gênero de demônios, a imundície do coração e a luxuria da carne, não pode expulsar-se senão com a oração e o jejum 148. Com a oração, de fato, limpamos o coração do pensamento impuro; com o jejum refreamos a petulância da carne.
Segue o terceiro: Árvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie 149. Nas árvores frutíferas designa-se a esmola, que frutifica nos indigentes e por suas mãos é levada ao céu. E nota que se diz dar fruto segundo a sua espécie. A espécie humana é um segundo homem criado do lodo e vivificado pela alma. Deve, portanto, a esmola dar fruto segundo a sua espécie, porque a alma é alimentada pelo espiritual, o corpo pelo pão corporal. Daí o dito de Job 150: Visitando a tua espécie, não pecarás. A tua espécie é um segundo homem 151, que deves visitar tanto com a esmola espiritual quanto com a corporal; e assim não pecarás contra aquele preceito:Amarás o teu próximo como a ti mesmo 152. Nota, porém, que se diz: Cuja semente esteja nela mesma.Comentário de S. Agostinho 153: O que ordenadamente deseja dar esmola deve começar primeiro por si mesmo. / Estas três obras tornam perfeita a satisfação da penitência, bem significada pela sexta hora, a saber, o meio-dia, por volta da qual o pai de família saiu a contratar operários para a sua vinha. O meio-dia, em que mais queima o sol do que noutra ocasião do dia, designa o fervor da satisfação. Por isso, afirma-se pelo fim do Deuteronômio 154: Neftali gozará de abundância e será cheio da bênção do Senhor: possuirá o mar e o meio-dia. Neftali interpreta-se convertido ou dilatado 155 e significa o penitente, que se converte do seu mau caminho e se dilata em boas obras. Este gozará da abundância da graça no presente estado de viador e será cheio da bênção da glória, porque, para merecer consegui-la, é preciso antes possuir o mar, isto é, a amargura do coração, e o meio-dia, isto é, o fervor da satisfação.
20. No quarto dia disse Deus: Façam-se dois luzeiros no firmamento 156. A quarta virtude é o amor de Deus e do próximo. O amor de Deus designa-se na claridade do sol, o do próximo na mutabilidade da lua. Acaso não te parece uma certa mutabilidade alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram? 157 Destas duas coisas se diz pelo fim do Deuteronômio 158: Com os frutos produzidos por virtude do sol e da lua encher-se-á a terra de José. Os frutos significam as obras do justo, por causa do encanto da perfeição, beleza da intenção pura, odor da boa opinião. Estes frutos são produzidos por virtude do sol e da lua, ou seja, do amor de Deus e do próximo; estas duas coisas fazem perfeito um qualquer. Este duplo amor designa-se na hora nona, por volta da qual saiu o pai de família. De fato, a perfeição do duplo amor conduz à perfeita da felicidade angélica, assim distribuída em nove ordens pelo profeta Ezequel 159, onde fala a Lúcifer, sob o tipo de nove pedras: O teu vestido é todo de pedra preciosa: o sárdio, o topázio e o jaspe, o crisólito, o ônix, o berilo, a safira, o carbúnculo e a esmeralda.
21. No quinto dia fez Deus os peixes do mar e as aves sobre a terra. A quinta virtude é o exercício da vida ativa e contemplativa; nesta, o homem ativo, semelhante ao peixe, percorre as veredas do mar, isto é, do mundo, a fim de poder socorrer o próximo que padeça necessidade; e o contemplativo, semelhante à ave, elevado no ar com a pena da contemplação, contempla o Rei na sua glória 160, conforme lho permite a sua pequenina capacidade 161. O homem, diz Job 162: nasce para o trabalho da vida ativa; e a ave para o vôo da vida contemplativa.
E nota que assim como a ave dotada de peito largo, por tomar muito ar, é retardada pelo vento, e a que tem peito estreito e agudo voa mais velozmente e sem dificuldade 163, também o entendimento do contemplativo, se se dilata em muitos e vários pensamentos, é demasiado impedido no vôo da contemplação, mas se junto e unido começar a voar, fruirá do gozo da contemplação. O exercício desta dupla vida designa-se na hora undécima, por volta da qual saiu o pai de família. A hora contemplativa refere-se ao um, porque contempla um só Deus, um só gozo; a vida ativa, portanto, refere-se aos dez preceitos do Decálogo, com os quais a mesma vida ativa se completa plenamente na vida deste exílio.
22. No sexto dia disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança 164. A sexta e última virtude da alma é a perseverança final, que é a cauda da vítima no sacrifício, a túnica talar polimita 165 de José, sem a qual as cinco sobreditas virtudes inutilmente se possuem, e com a qual utilmente se possuem. Nela, como se fora no sexto dia, a imagem e semelhança de Deus, que nunca se deve deturpar, nunca obliterar, nunca manchar, se imprime eternamente na face da alma.
Esta tarde do Evangelho, a última hora da vida humana, em que o pai de família, por meio dum dispenseiro, isto é, de seu Filho, dá um dinheiro ao que trabalhou bem na vinha, é significada pelo sábado, que se interpreta descanso 166. Deste escreve Isaías 167: Será mês de mês, isto é, será a perfeição da glória conforme a perfeição da vida 168; e sábado de sábado, isto é, o descanso da eternidade dependerá do descanso do espírito, descanso que consiste na dupla estola da alma e do corpo 169.
A alma será glorificada por três dotes e o corpo por quatro. A alma adornar-se-á da sabedoria, da amizade e da concórdia 170. A sabedoria de Deus aparecerá na face da alma e verá a Deus tal-qual é 171, e conhecerá como é conhecida 172; a amizade será também para com Deus; donde a frase de Isaías 173: O seu fogo será em Sião, isto é, na Igreja militante, e fornalha de ardentíssimo amor em Jerusalém, isto é, na Igreja triunfante; a concórdia será para com o próximo, de cuja glória a alma gozará tanto quanto gozar dela própria. Quatro serão também os dotes do corpo: a claridade, a sutileza, a agilidade e a imortalidade, dos quais se diz no livro da Sabedoria 174: Os justos resplandecerão, eis a claridade, e brilharão como centelhas, eis a sutileza, que correm num canavial, eis a agilidade; e o seu Senhor reinará para sempre, eis a imortalidade 175. De fato, Deus não é de mortos, mas de vivos 176.
23. Para merecer esta coroa corruptível, dotada destas sete pedras, corramos, como diz o Apóstolo 177 na Epístola de hoje: Não sabeis que os que correm no estádio, correm, sim, todos, mas só um alcança o prêmio? Correi, pois, de tal maneira que o alcanceis. E todos aqueles que combatem na arena de tudo se abstêm; e eles para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível. O estádio é a oitava parte da milha, e consta de 125 passos 178, e significa o trabalho deste exílio. Nele devemos correr na unidade da fé 179, com passos de amor 180, que são 125. Neste número designa-se toda a perfeição do amor divino. No 100, número perfeito, é designada a doutrina evangélica 181; no 20, os dez preceitos do Decálogo, que se devem cumprir literal e espiritualmente 182; no 5, o prazer dos cinco sentidos, prazer que se deve refrear 183. Quem corre em semelhante estádio recebe o prêmio, isto é, a remuneração da coroa incorruptível. Dela diz o Senhor no Apocalipse 184: Dar-te-ei a coroa da vida.
Irmãos caríssimos, imploremos humildemente e com lágrimas, a quem nos criou e voltou a criar, criou do nada e voltou a criar com o próprio sangue, se digne dar-nos os sete dons da eterna felicidade; e com Ele, princípio de todas as criaturas, mereçamos viver eternamente. Auxilie-nos Ele mesmo, que vive e reina por séculos de séculos. Assim seja.
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1.Gn 1, 1
2.Cf. Ez., 4, 1.
3.GREG., Homiliarum in Ezechielem I, homilia 12, 23, PL 76, 929
4.GREG., I, c.
5.ISID., Etym. XV, 8, 16, PL 82, 550. Neste passo St. Isidoro inspirou-se em Varrão.
6.Sl 103, 10.
7.Cf. Glo. Int., ibidem.
8.Sl 118, 96.
9.Cf. Ecli 27, 6; cf. Sab 3, 6.
10.Sl 68, 10.
11.3Reis 49, 10.
12.Cf. BEDA, In Cantica Canticorum allegorica expositio, IV, PL 91, 1142.
13.Neste mesmo sermão, à frente, ao tratar da glorificação da alma e do corpo, o Santo dirá que o justo será premiado no céu com sete dons: três a alma e quatro o corpo.
14.P. COMESTOR, Historia Scholastica, Liber Genesis 1, PL 198, 1055.
15.Cf. Gen 1, 3 e 3, 15. As palavras creare e recreare são inspiradas em AGOST., In Joannem tr. XV, e Sermo ad populum, cp. II, PL 38,24.
16.Gen 1, 3.
17.Gen 1, 6 (Vg... et dividat...).
18.Gen 1, 11 (Vg... et lignum...).
19.Gen 1, 14 (Vg Fiant luminária in...).
20.Cf. Gen 1, 20.
21.Gen 1, 26; 2, 7.
22.Cf. 2, 2.
23.Cf. Jo 1, 9.
24.Cf. 1Tim 6, 16.
25.Heb 1, 3 (Vg... splendor gloriae...).
26.Sl 35, 10.
27.Sab 7, 26 (Vg... candor est enim...).
28.Jo 1, 14.
29.Ez 3, 22.
30.Cf. Lc 1, 79.
31.Cf. Jo 9, 6.
32.Cf. Glo. Ord., Ibidem.
33.1Cor 11, 3 (Vg... Caput vero...).
34.Cf. Glo. Ord., Jo 9, 1.
35.Gen 1, 2.
36.Missa da Aurora, ou 2ª Missa do Natal.
37.Intróito da mesma missa. Cf. Is 9, 2, 6.
38.Lc 2, 9 (Vg Claritas Dei circumfulsit illos...).
39.Gen 1, 6.
40.Col 3, 1.
41.Cf. ISID., Etym. XVI, 13, 1, PL 82, 577.
42.Ez 47, 8 (Vg. muda).
43.Glo. Ord., Job 5, 26.
44.Job 5, 26.
45.Ex 2, 12 (Vg... abscondit sabulo).
46.Zac 6, 12.
47.Cf. Gen 34, 1; 28, 9.
48.Cf. Gen 4, 16.
49.Cf. Jo 13, 29-30.
50.Cf. Jer 39, 4-7.
51.Glo. Ord., Gen 4, 1.
52.Glo. Ord., ibidem.
53.Gen 11, 2 (Vg. muda).
54.Glo. Int., Ibidem.
55.Ex 20, 7 (Vg... nomen Domini Dei...).
56.Is 24, 5-6 (Vg... propter hoc...).
57.Cf. Tob 4, 16.
58.Cf. Ap 8, 13.
59.Gen 1, 11.
60.Cf. ISID., Etym. XIV, 1, 1, PL 82, 495.
61.Glo. Ord., Job 9, 24.
62.Cf. Is 53, 5.
63.HERVIEUX, Les fabulistes latins, 4, 354. Cf. WALTHER, Carmina.
64.Cant 8, 8 (Vg... parva... in die quando...; in Glossa: ...parvula...).
65.Glo. Inter., Jo 14, 26.
66.Jo 14, 26.
67.Cf. GREG., Homiliarum in Ez. I, homilia 7, 19, PL 76, 849.
68.Rom 8, 22.
69.Is 46, 11.
70.Sl 67, 34.
71.Glo. Int., ibidem.
72.Cf. Glo. Int., Is 1, c..
73.Glo. Int., ibidem.
74.Jo 4, 34 (Vg... voluntatem eius qui...).
75.Gen 2, 7 (Vg... in faciem eius...).
76.Atos 2, 2.
77.Sl 4, 7.
78.Gen 1. c.
79.Cf. Ap 21, 4.
80.Cf. Glo. Ord., ibidem.
81.Prov 31, 31 (Vg...mannum suarum et...).
82.3Reis 19, 12 (Vg. Sibilus).
83.Mt 25, 34.
84.Cf. Mt 21, 33.
85.Gen 1, 3.
86.Cf. Ez 1, 16.
87.Glo. Ord., ibidem; cf. GREG., Homiliarum in Ez. I, hom. 6, 15, PL 76, 835.
88.Cf. Ex 36, 3.
89.Mt 20, 1 (Vg...homini patrifamilias...).
90.Glo. Int., Gen 1, 2.
91.Cf. Ex 10, 21-23.
92.Cf. AGOST., Soliloquiorum II, 1, 1, PL 32, 885
93.Cf. Gen 2, 9.
94.Ecli 10, 31 (Vg. muda).
95.Sl 48, 13.
96.Miq 6, 14.
97.OVÍDIO, Remedia amoris, 323-324.
98.1Cor 9, 24.
99.Sl 5,5 (Vg. Mane astabo...).
100.Cf. AGOST., De Genesi ad litteram, VI, 12, 22. PL, 34, 348. Cf. De Genesi contra Manicheos I. c. 17, n. 28, PL 34, 187.
101.Mc 16, 2.
102.Cf. ISID., Etym. XV, 11, 1, PL 82, 551.
103.O sábado simboliza, em linguagem bíblica e aqui na pena de St. Antônio, o descanso ou repouso.
104.Sl 100, 8.
105.Cant 6, 9 (Vg... quae progreditur...).
106.Ef 5, 8 (Vg. Eratis enim...).
107.Rom 13, 12.
108.Is 5, 1-2 (Vg. muda).
109.Trata-se de hebraísmo, que significa: No cume de empinado monte, fertilíssimo de oliveiras. Singular a interpretação do Doutor Evangélico.
110.Cf. Glo. Ord., Is. 5, 1.
111.Glo. Int., ibidem.
112.Tito 3, 5.
113.Ecle 10 ,8.
114.Glo. Int., ibidem.
115.Cf. ISID., Etym. XII, 4, 2, PL 82, 442.
116.Job 40, 06.
117.Cf. Glo. Int., ibidem.
118.1Reis 11, 11 (V. muda).
119.Cf. Glo. Int., Gen 19, 38: “que se interpreta filho do meu povo”.
120.Jonas 4, 7 (Vg. muda, omite).
121.ISID., Etym. XVII, 22, PL 82, 626.
122.Lc 16, 9.
123.Vitis mystica, 6, 29, PL 184, 654.
124.Sl 72, 26 (Vg. muda); cf. Glo. Int.; ibi.
125.Gen 1, 6.
126.Jer 31, 22 (Vg. muda).
127.Is 23, 10 (Vg. muda).
128.Tg 1, 15.
129.Cf. Glo. Ord. e Int., Gen 1, 6.
130.P. LOMB., Sententiarum II, dist. 24, 4, p. 422.
131.Cf. Gen 19, 17.26.
132.Cf. Ex 16, 3.
133.Cf. Lc 5, 37 e Glo. Ord., ibi.
134.Cf. Atos 1, 18.
135.Cf . Sl 17, 5-7.
136.Gen 1, 11.
137.Job 39- 5-8 (Vg. muda, omite).
138.Na realidade, a origem do vocábulo ónagro é ónos (burro) e agros (campo), como aliás em lugar paralelo explica.
139.Jo 11, 44.
140.Mal 3, 6.
141.Sl 54, 10.
142.Cf. GREG., Moralium XXX, 18, 57, PL 76, 555.
143.Alude-se à graça existente no justo.
144.Cf. GREG., o. c., XXX, 18, 19, 58, 61, 64, PL 76, 5551 557-558, 559.
145.Sl 22, 2.
146.Is 32, 20 (Vg... super omnes aquas innectentes pedem...).
147.Glo. Int., ibidem.
148.Cf Mt 17,20.
149.Gen 1, 11.
150.Job 5, 24.
151.Cf. GREG., Moralium VI, 35, 54, PL 75, 758.
152.Mt 22, 39.
153.AGOST., Enchiridon 76, PL 40, 268.
154.Deut 33, 23 (Vg... benedictionibus...).
155.Cf. Glo. Int., Gen 30, 8.
156.Gen 1 14.
157.Rom 12, 15.
158.Deut 33, 14.
159.Ez 28, 13.
160.Is 33, 17.
161.Cf. ISID., Quaest. in Gen., c. 1, 12, PL 83, 211.
162.Job 5, 7.
163.Cf. ARIST., De part. na., IV, 12, 693b, 16-18.
164.Gen 1, 26.
165.Polimita quer dizer pintada de variegadas cores. Cf. GREG., In Evangelia homilia 25, 1, PL 76, 1189.
166.GREG., Homiliarum in Ezechielem I, homilia 6, 18, PL 76, 838; ISID., Etym. VI, 18, 18, PL 82, 251.
167.Is 66, 23.
168.Cf. GREG., 1. c.
169.Cf. GREG., In libros Moralium Praefatio, 10, 20, PL 75, 528; INOCÊNCIO III, Sermo 14, PL 217, 380
170.Cf. GUILHERME DE ST. THIERRY (e não SÃO BERNARDO, nem GUIGO CARTUSIANO, aos quais se atribuiu a obra), Epistola ad fratres de Monte Dei, III, 2, 3, PL 184, 355. Cf. Atas 1981, p.178, nota 30.
171.Cf 1Jo 3, 2.
172.Cf 1Cor 13, 12.
173.Is 31, 9; cf. Glo. Int., ibi.
174.Sab 3, 7.8.
175.Cf. INOC., o. c., PL 217, 380-381.
176.Cf. Mt 22, 32.
177.1Cor 9, 24-25.
178.Esta simbologia dos números está dentro dos processos literários do sermão medieval. Aqui St. Antônio bebe diretamente de ISID., Etym. XV, 16, 3, PL 82, 557.
179.Cf. Ef 4, 13.
180.GREG., In Evangelia homilia 29, 11, PL 76, 1219.
181.Cf. GREG., Hom. in Ez. II, hom. 6, 16, PL 76, 1007.
182.Cf. Glo. Int., Gen 18, 31.
183.Cf. Glo. Ord., Mt 25, 2.
184.Ap 2, 10.