por Santo Afonso Maria de Ligório
Parte III
Prática da mortificação externa
Aquelas penitências extraordinárias podem ser praticadas por poucos cristãos, chamados por Deus para um tal modo de vida. Mas todos nós devemos manter o nosso corpo em rigoroso regime, porque somos pecadores. E, para isso, cada um de nós tem os meios. Podemos praticar a mortificação externa no uso de todos os nossos sentidos, em todas as nossos ações, em todos os passos e condições de nossa vida.
Para isso, basta abraçar aquilo que é difícil à nossa natureza. Por exemplo, de manhã, levantar-se a uma hora fixa, entregando-se com pontualidade à oração;assistir o Santo Sacrifício da Missa; renunciar a um prazer proibido ou a uma leitura perigosa; obedecer prontamente às ordens dos pais ou superiores; cumprir principalmente com fidelidade os deveres e os trabalhos cotidianos; suportar com paciência tribulações e sofrimentos: são, essas coisas todas, mortificações que, praticadas com pura intenção, são muito agradáveis a Deus e mui meritórias para o Céu.
Falaremos aqui, alma cristã, de várias mortificações pequenas aque te podes sujeitar sem perigo para tua saúde e com sumo proveito para tua alma.
1. Mortificação da vista
As primeiras setas que ferem uma alma casta e, às vezes, a matam, entram pelos olhos. Por meio dos olhos entram no espírito os maus pensamentos. "Não se deseja o que não se vê", diz São Francisco de Sales. Não leias, por isso, nunca, livros proibidos ou perigosos. Renuncia, de vez em quando, ao prazer de ver coisas extraordinárias, ainda que sejam inteiramente decorosas.
Segundo São Jerônimo (Ep. ad Fur.), é o rosto o espelho da alma e os olhos castos dão testemunho da castidade do coração.
2. Mortificação do ouvido
Evita ouvir conversas inconvenientes ou difamações, e mesmo conversas mundanas sem necessidade, pois estas enchem nossa cabeça com uma multidão de pensamentos e imaginações que nos distraem e perturbam mais tarde nas nossas orações e exercícios de piedade. Se assistires a conversas inúteis, procura quanto possível dar-lhes outra direção, propondo, por exemplo, uma importante questão. Se isso não der resultado, procura retirar-te ou, ao menos, cala-te e baixa os olhos para mostrar que não achas gosto em tais conversas.
3. Mortificação do olfato
3. Mortificação do olfato
Renuncia a todos os vãos perfumes, sejam quais forem; suporta, antes, de boa vontade, o mau cheiro que reina em geral nos quartos dos doentes. Imita o exemplo dos Santos que, animados pelo espírito de caridade e mortificação, sentiam tanto gosto no ar corrompido das enfermarias, como se estivessem em jardins de flores odoríferas.
4. Mortificação do tato
Quanto ao tato, esforça-te por evitar qualquer falta, pois cada falta neste sentido contêm um perigo de morte eterna para a alma. Emprega toda modéstia e cuidado não só a respeito dos outro, mas também de ti mesmo, para conservar a bela jóia da pureza. Procura, quanto possível, refrear pela mortificação esse sentido.
São João da Cruz dizia que, se alguém ensinasse que a mortificação do tato não é necessária, não se lhe deveria dar crédito, ainda que operasse milagres. Jesus Cristo mesmo disse uma vez à Madre Maria de Jesus, carmelita: "O mundo precipitou-se no abismo por causa do prazer, e não da mortificação".
Se não temos coragem de crucificar a nossa carne com penitências, ao menos esforcemo-nos por suportar com paciência as pequenas contrariedades que Deus mesmo nos envia, como doenças, calor, frio, etc. Digamos com S. Bernardo (Medit., c. 15): "O desprezador de Deus deve ser esmagado; ele merece a morte: deve ser crucificado". Sim, meu Deus, é justo que quem Vos desprezou seja castigado; eu mereço a morte eterna; seja eu, pois, crucificado neste mundo, para que não sofra eternamente no outro.
5. Mortificação do paladar
Quanto à mortificação do paladar, será bom desenvolver mais a fundo a necessidade e a maneira de nos mortificarmos nesse sentido.
§5.1- Santo André Avelino diz que quem deseja alcançar a perfeição, deve começar com uma séria mortificação do paladar. Antes dele já o afirmara São Gregório Magno (Mor., 1. 30, c. 26): "Para se poder dispor para o combate espiritual, deve-se reprimir a gula". O comer, porém, satisfaz necessariamente ao paladar: não nos será, pois, lícito, comer coisa alguma?
Certamente devemos comer: Deus mesmo quer que, por esse meio, conservemos a vida do corpo para O servirmos enquanto nos permite ficar no mundo. Devemos, porém, cuidar de nosso corpo do mesmo modo, diz o padre Vicente Carafa, como o faria um rei poderoso com um animal que ele, com as próprias mãos, tivesse de tratar várias vezes durante o dia; seguramente cumpriria o seu dever; mas, como? Contrariado e desgostoso e o mais depressa possível. "Deve-se comer para viver, diz S. Francisco de Sales, e não viver para comer".
Parece, contudo, que muitos vivem só para comer, como os irracionais. O homem assemelha-se ao animal, diz S. Bernardo, e deixa de ser espiritual e racional, se gosta da comida como o animal. Assim assemelhou-se aos animais o infeliz Adão, comendo do fruto proibido. Se os animais tivessem tido o uso da razão, acrescenta o mesmo Santo (In Cant., s. 35), ao verem Adão se esquecer de Deus e de sua salvação eterna por causa do miserável desejo de uma fruta, certamente haveriam de exclamar: "Vede, Adão se tornou um animal como nós!" Isso levou Santa Catarina de Sena a dizer: "É impossível que aquele que se não mortifica no comer, conserve a inocência, visato que Adão a perdeu em razão de seu gosto de comer". Como é triste ver homens "cujo Deus é o ventre" (Filip 3, 19).
Tomemos cuidado para que não sejamos subjugados por esse vício animal. É verdade que nos devemos alimentar para a conservação da vida, diz Sto. Agostinho; mas devem-se tomar os alimentos como os remédios, isto é, só tanto quanto necessário, e nada mais. A intemperança no comer prejudica a alma e o corpo. Quanto ao corpo, é fora de dúvida que grande número de doenças provêm desse vício: apoplexia, dor de cabeça, dores de estômago e outros males. As doenças do corpo, porém, são o menor mal; um mal muito pior são as doenças da alma que disso se originam.
Primeiramente, obscurece esse vício o entendiemnto, como ensina S. Tomás, e o torna imprestável para os exercícios espirituais, particularmente para a oração. Assim como o jejum dispõe a alma para a meditação de Deus e dos bens eternos, assim a intemperança retrai disso. Segundo S. João Crisóstomo, aquele que enche o estômago com comidas é semelhante a um navio muito carregado, que apenas se pode mover do lugar: ele se acha em grande perigo de afundar, se uma tempestade de tentações lhe advêm.
Além disso, quem concede toda a liberdade a seu paladar, facilmente estenderá a mesma liberdade aos outros sentidos, pois, se o recolhimento de espírito desapareceu, facilmente se cometem ainda outras faltas por palavras e obras. O pior é que, pela intemperança no comer e beber, expõe-se a castidade a um grande perigo. "Excessiva saciedade produz lascívia", diz S. Jerônimo (Adv. Jovin., 1. 2). E Cassiano afirma que é simplesmente impossível ficar livre de tentações impuras, enchendo-se o estômago de comidas.
Os Santos, justamente porque queriam conservar a castidade, eram tão rigorosos na mortificação do paladar. "Se o demônio é vencido nas tentações de intemperança, diz o Doutor Angélico, não nos continua a nos tentar à impureza".
Os que cuidam em mortificar o paladar fazem contínuos progressos na vida espiritual. Adquirem mais facilidade em mortificar os outros sentidos e em praticar as outras virtudes. Pelo jejum, assim se exprime a Santa Igreja em suas orações, concede o Senhor à nossa alma a força de superar os vícios, de se elevar acima das coisas terrenas, de praticar a virtude e adquirir merecimentos infinitos (Praef. Quadrag.).
Os homens sensuais objetam que Deus criou os alimentos para que nos utilizemos deles. Mas os cristãos fervorosos são da opinião do venerável padre Vicente Carafa, que diz, como notamos acima, que Deus nos deu as coisas deste mundo não só para nosso gozo, mas também para que tivéssemos ocasião de Lhe fazer um sacrifício. Quem é dado à gulodice e não se esforça por se mortificar nesse ponto, nunca fará um progresso notável na vida interior. Regularmente, se come várias vezes durante o dia; quem, pois, não procura mortificar o desejo de comer, cometerá quotidianamente muitas faltas.
§5.2- Vejamos agora o modo como devemos mortificar o nosso paladar.
§5.2- Vejamos agora o modo como devemos mortificar o nosso paladar.
a) Quanto à qualidade das comidas, diz São Boaventura, que não se devem escolher comidas muito especiais, mas contentar-se com pratos simples.Segundo o mesmo Santo, é sinal de alguém estar muito atrasado na vida espiritual não ficar contente com as comidas que se lhes apresentem e desejar outras que agradem mais ao paladar, ou requerer que sejam preparadas de um modo particular. Mui diversamente procede quem é mortificado: contenta-se com o que se lhe dá e, se diferentes pratos são trazidos, certamente escolherá aqueles que menos satisfazem ao paladar, contanto que não lhe façam mal.
É muito recomendável privar-se, por mortificação, de temperos desnecessários, que só servem para lisonjear o paladar. O tempero de que usavam os Santos era a cinza e o absinto. Não exijo de ti, alma cristã, tais mortificações, nem tampouco muitos jejuns extraordinários. Não sou, de forma alguma, contrário a que jejues com todo o rigor em certos dias particulares, como na sexta-feira ou no sábado, ou nas vésperas das festas de Nosso Senhor ou em dias semelhantes, pois isso costumam fazer os cristãos verdadeiramente piedosos.Se, porém, não possuis tanta piedade ou se tuas enfermidades não te permitem guardar rigorosos jejuns, deves ao menos te contentar com o que te servirem e não te queixar das comidas.
b) Quanto à quantidade das comidas, diz São Boaventura: "Não deves comer mais, nem mais vezes, do que te é necessário para sustentar, e não para agravar, teu corpo". Por isso, é uma regra, para todos os que querem levar uma vida devota, não comer nunca até à saciedade, como São Jerônimo aconselhava à virgem Santa Eustóquio, escrevendo-lhe: "Sê sóbria no comer e nunca enchas o estômago". Alguns jejuam num dia e comem demais no dia seguinte; é melhor, segundo S. Jerônimo, tomar regularmente a alimentação necessária, do que comer demasiadamente depois do jejum. Com razão dizia um Padre do deserto: "Quem come mais vezes, tendo, apesar disso, sempre fome, receberá uma recompensa maior do que aquele que come raras vezes, mas até à saciedade". "Uma temperança constante e regrada, diz S. Francisco de Sales, é melhor que um rigoroso jejum de vez em quando, ao qual se faz seguir uma falta de mortificação" (Filotéia, p. 3, c. 23).
Se alguém quer reduzir seu sustento à justa medida, convém que o faça pouco a pouco, até que conheça, pela experiência, até onde pode ir na mortificação sem se causar sensível dano.
Contudo, todos devem tomar como regra o comer pouco à noite, mesmo quando lhes parecer que necessitam de mais; a fome de noite é, muitas vezes, só aparente e, se se passa um pouco só da justa medida, sente-se muito incômodo na manhã seguinte: sente-se dor de cabeça, dores de estômago, está-se indisposto, e até incapaz de qualquer trabalho espiritual.
Quanto à medida que se deve guardar no beber, sem perigo algum para tua saúde, podes te impôr a mortificação de nada beberes fora da refeição, a não ser que devas ceder a um especial impulso da natureza, para não te causares algum dano, como pode acontecer no verão. São Lourenço Justiniano, porém, nunca bebia coisa alguma fora da refeição, mesmo nos dias de maior calor, e quando se lhe perguntava como podia suportar a sede, respondia: "Como poderei suportar as chamas do Purgatório, se não puder suportar agora esta privação?"
Referindo-se ao vinho, diz a Sagrada Escritura: "Não dês vinho aos reis" (Prov 31, 4). Sob essa expressão de reis, não se entendem os que reinam sobre nações, mas todos os homens que domam suas paixões e as submetem à razão. Infelizes daqueles que são dados ao vício da embriaguês, diz a Sagrada Escritura (Prov 23, 29). E por quê? Porque o vinho torna o homem luxurioso (Prov 20,1). Por isso escreveu S. Jerônimo à virgem Eustóquio: "Se quiseres permanecer pura, como deve ser uma esposa de Jesus Cristo, evita o vinho como veneno: vinho e mocidade são duas iscas" (Ep. 22 ad Eust.).
Referindo-se ao vinho, diz a Sagrada Escritura: "Não dês vinho aos reis" (Prov 31, 4). Sob essa expressão de reis, não se entendem os que reinam sobre nações, mas todos os homens que domam suas paixões e as submetem à razão. Infelizes daqueles que são dados ao vício da embriaguês, diz a Sagrada Escritura (Prov 23, 29). E por quê? Porque o vinho torna o homem luxurioso (Prov 20,1). Por isso escreveu S. Jerônimo à virgem Eustóquio: "Se quiseres permanecer pura, como deve ser uma esposa de Jesus Cristo, evita o vinho como veneno: vinho e mocidade são duas iscas" (Ep. 22 ad Eust.).
De tudo isso devemos deduzir que aqueles que não possuem virtude ou saúde suficiente para renunciar por completo ao vinho, devem ao menos servir-se dele com grande sobriedade, para não serem atormentados por mui fortes tentações impuras.
c) Sobre a questão de quando e como se deve comer, São Boaventura nos ensina o seguinte:
Primeiro, não se deve comer fora de hora, isto é, fora da hora da refeição comum. Um penitente de São Filipe Néri tinha esse defeito. O Santo o corrigiu com as palavras: "Meu filho, se não te emendares dessas falta, nunca chegarás a ter uma vida espiritual".
Primeiro, não se deve comer fora de hora, isto é, fora da hora da refeição comum. Um penitente de São Filipe Néri tinha esse defeito. O Santo o corrigiu com as palavras: "Meu filho, se não te emendares dessas falta, nunca chegarás a ter uma vida espiritual".
Segundo: nunca se deve comer desregradamente, isto é, com avidez, por exemplo, enchendo a boca demais, com tal pressa que antes de se engolir um bocado já se leva outro à boca. "Não sejas glutão em banquete algum" (Ecli 37, 22), diz-nos o Espírito Santo. Além disso, deves tomar os alimentos com a boa intenção de conservar as forças do corpo, para podermos servir ao Senhor.
A justa medida no comer exclui também um jejum imoderado, pelo qual um se torna incapaz de cumprir com seus deveres de estado. Cometem muitas vezes essa falta os principiantes: levados por aquele zelo sensível que Deus costuma conceder-lhes no princípio para animá-los no caminho da perfeição, impõem-se privações e jejuns excessivos, que tem por resultado transtornar-lhes a saúde e fazê-los abandonar tudo. O patrão que entrega seu cavalo a um criado para que o trate, certamente não só o repreenderá não só se nada der ao cavalo, como se der demais.
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Excerto do livro: Escola da Perfeição Cristã - Santo Afonso Maria de Ligório - Livro de 1955
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