INDE A PRIMIS
O CULTO DO PRECIOSÍSSIMO SANGUE DE JESUS CRISTO
Aos veneráueis irmâos patriarcas, primazes,
arcebispos, bispos e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé
Apostólica.
Veneráveis Irmãos, saudação e Bênção Apostólica,
1. Desde os primeiros meses do nosso serviço
pontifício aconteceu-nos muitas vezes - e não raro a palavra foi precursora
ansiosa e inocente do nosso próprio sentir - convidar os fiéis, em matéria de
devoção viva e cotidiana, a se volverem com ardente fervor para a expressão
divina da misericórdia do Senhor sobre as almas individuais, sobre a sua Igreja
santa e sobre o mundo inteiro, dos quais todos Jesus continua sendo o Redentor
e o Salvador. Queremos dizer a devoção ao Preciosíssimo Sangue.
2. Esta devoção foi-nos instilada no próprio
ambiente doméstico em que floresceu a nossa infância, e sempre recordamos com
viva emoção a recitação das ladainhas do Preciosíssimo Sangue que os nossos
velhos pais faziam no mês de julho.
3. Lembrados da salutar exortação do Apóstolo:
"Estai atentos a vós mesmos e a todo o rebanho: nele o Espírito Santo vos
constituiu guardiães, para apascentardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu
para si pelo sangue de seu próprio Filho" (At 20,28), cremos, ó Veneráveis
Irmãos, que entre as solicitudes do nosso universal ministério pastoral, depois
da vigilância sobre a sã doutrina deve ter um lugar privilegiado aquela que diz
respeito ao reto desenvolvimento e ao incremento da piedade religiosa, nas
manifestações do culto litúrgico e privado. Parece-nos, portanto,
particularmente oportuno chamar a atenção dos nossos diletos filhos para o nexo
indissolúvel que deve unir as duas devoções, já tão difundidas no seio do povo
cristão, isto é, o ss. Nome de Jesus e o seu sacratíssimo Coração, aquela que
pretende honrar o Sangue Preciosíssimo do Verbo encarnado, "derramado por
muitos em remissão dos pecados" (cf. Mt 26,28).
4. Com efeito, se é de suma importância que entre o
Credo católico e a ação litúrgica da Igreja reine uma salutar harmonia, visto
que "a norma do acreditar define a norma de rezar",(1) e nunca sejam
consentidas formas de culto que não brotem das fontes puríssimas da verdadeira
fé, é justo, outrossim, que floresça harmonia semelhante entre as várias
devoções, de modo que não haja contraste ou dissociação entre as que são
consideradas como fundamentais e mais santificantes, e que, ao mesmo tempo,
sobre as devoções pessoais e secundárias tenham o primado na estima e na
prática aquelas que melhor realizam a economia da salvação universal operada
pelo "único mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus homem, aquele
que deu a si mesmo em resgate por todos" (1Tm 2,5-6). Movendo-se nesta
atmosfera de reta fé e de sã piedade, os féis estão seguros de sentir com a
Igreja, ou seja de viverem em comunhão de oração e de caridade com Jesus
Cristo, fundador e sumo sacerdote dessa sublime religião que dele recebe, com o
nome, toda a sua dignidade e valor.
5. Se agora detivermos um rápido olhar aos
admiráveis progressos que a Igreja católica tem operado no campo da piedade
litúrgica, em salutar consonância com o desenvolvimento da sua fé na penetração
das verdades divinas, indubitavelmente será consolador verificarmos que nos
séculos próximos a nós não faltaram, da parte desta Sé Apostólica, claros e
repetidos atestados de consentimento e de incentivo para todas as três devoções
supra mencionadas; devoções que foram praticadas desde a Idade Média por muitas
almas piedosas, e depois foram difundidas em várias dioceses, ordens e
congregações religiosas, mas que aguardavam da Cátedra de Pedro o cunho da
ortodoxia e a aprovação para a Igreja universal.
6. Baste-nos recordar que os nossos predecessores
desde o século XVI enriqueceram de favores espirituais a devoção ao ss. Nome de
Jesus, da qual no século precedente se fizera apóstolo infatigável, na Itália,
Ss Bernardino de Sena. Em honra desse ss. Nome foram, antes de tudo, aprovados
o ofício e a missa, e em seguida as Ladainhas.(2) Nem foram menos insignes os
privilégios concedidos pelos pontífices romanos ao culto para com o
sacratíssimo Coração de Jesus, em cuja admirável propagação (3) tamanha parte
tiveram as revelações feitas pelo Sagrado Coração a Santa Margarida Maria Alacoque.
E tão alta e unânime tem sido a estima dos pontífices romanos a esta devoção,
que eles se comprazeram em lhe ilustrar a natureza, defender a legitimidade, e
inculcar a prática com muitos atos oficiais, aos quais puseram coroamento três
importantes encíclicas sobre este assunto. (4)
7. Mas também a devoção ao Preciosíssimo Sangue de
Jesus, da qual foi propagador admirável no século passado o sacerdote romano s.
Gaspar del Bufalo, teve o merecido consentimento e o favor desta Sé Apostólica.
Com efeito, importa recordar que, por ordem de Bento XIV, foram compostos a
missa e o ofício em honra do Sangue adorável do divino Salvador; e que Pio IX,
em cumprimento de um voto feito em Gaeta, quis que a festa litúrgica fosse
estendida à Igreja universal. (5) Finalmente, foi Pio XI, de feliz memória,
quem, em lembrança do 19° centenário da redenção, elevou a sobredita festa a
rito duplo de primeira classe, a fim de que, pela acrescida solenidade
litúrgica, mais intensa se tornasse a própria devoção, e mais copiosos se
entornassem sobre os homens os frutos do Sangue redentor.
8. Seguindo, portanto, o exemplo dos nossos
predecessores, com o fim de favorecer ulteriormente o culto para com o precioso
Sangue do Cordeiro imaculado, Cristo Jesus, aprovamos-lhe as ladainhas, segundo
a ordem compilada pela Sacra Congregação dos ritos,(6) incentivando outrossim a
reza das mesmas em todo o mundo católico, quer em particular quer em público,
com a concessão de indulgências especiais.(7) Possa este novo ato do cuidado
por todas as Igrejas (cf.lCor 11,28), próprio do pontificado supremo, em tempo
das mais graves e urgentes necessidades espirituais, acordar no ânimo dos
crentes a convicção do valor perene, universal, sumamente prático das três
louvadas devoções.
9. Por isto, ao aproximar-se a festa e o mês
dedicados ao culto do Sangue de Cristo, preço do nosso resgate, penhor de
salvação e de vida eterna, façam-na os fiéis objeto de meditações mais devotas
e de comunhões sacramentais mais frequentes. Iluminados pelos salutares
ensinamentos que promanam dos Livros Sagrados e da doutrina dos padres e
doutores da Igreja, reflitam no valor superabundante, infinito desse Sangue
verdadeiramente preciosíssimo, do qual uma só gota pode salvar o mundo todo de
toda culpa", (8) como canta a Igreja com o Angélico Doutor, e como
sabiamente confirmou o nosso predecessor Clemente VI. (9)
10. Porquanto, se infinito é o valor do Sangue do
Homem-Deus, e se infinita foi a caridade que o impeliu a derramá-lo desde o
oitavo dia do seu nascimento, e depois, com superabundância, na agonia do horto
(cf. Lc 22,43), na flagelação e na coroação de espinhos, na subida ao Calvário
e na crucifixão, e, enfim, da ampla ferida do seu lado, como símbolo desse
mesmo Sangue divino que corre em todos os sacramentos da Igreja, não só é
conveniente, mas é também sumamente justo que a ele sejam tributadas homenagens
de adoração e de amorosa gratidão por parte de todos os que foram regenerados
nas suas ondas salutares.
11. E ao culto de latria a ser prestado ao cálice
do Sangue do Novo Testamento, sobretudo no momento da sua elevação no
sacrifício da Missa, é sumamente conveniente e salutar que se siga a comunhão
com esse mesmo Sangue, indissoluvelmente unido ao corpo do nosso Salvador no
sacramento da eucaristia. Em união, então, com o sacerdote celebrante, poderão
os fiéis com plena verdade repetir mentalmente as palavras que ele pronuncia no
momento da comunhão; "Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do
Senhor... O sangue de Cristo me guarde para a vida eterna. Amém". Desse
modo os fiéis que dele se aproximarem dignamente receberão mais abundantes os
frutos de redenção, de ressurreição e de vida eterna que o Sangue derramado por
Cristo "por impulso do Espírito Santo" (Hb 9,14) mereceu para o mundo
inteiro. E, nutridos do corpo e do sangue de Cristo, tornados participantes do
seu poder divino, que fez surgir legiões de mártires, eles irão ao encontro das
lutas cotidianas, dos sacrifícios, até mesmo do martírio, se preciso, em defesa
da virtude e do reino de Deus, sentindo em si mesmos aquele ardor de caridade
que fazia S. João Crisóstomo exclamar: "Saímos daquela mesa quais leões
expirando chamas, tornados terríveis ao demônio, pensando em quem é o nosso
Chefe e quanto amor teve por nós... Esse Sangue, se dignamente recebido, afasta
os demônios, chama para junto de nós os anjos e o próprio Senhor dos anjos...
Esse Sangue derramado purifica o mundo todo... Este é o preço do universo, com
ele Cristo redime a Igreja... Tal pensamento deve refrear as nossas paixões.
Até quando, com efeito, ficaremos apegados ao mundo presente?Até quando
ficaremos inertes? Até quando descuraremos pensar na nossa salvação? Reflitamos
sobre os bens que o Senhor se dignou de nos conceder, sejamos-lhe gratos por
eles, glorifiquemo-lo não só com a fé, mas também com as obras".(10)
12. Oh! se os cristãos refletissem mais frequentemente
no paternal aviso do primeiro papa: "Portai-vos com temor durante o tempo
do vosso exílio. Pois sabeis que não foi com coisas perecíveis, isto é, com
prata ou ouro que fostes resgatados..., mas pelo sangue precioso de Cristo,
como de um cordeiro sem defeito e sem mácula" (1Pd 1,1719); se eles dessem
mais solícito ouvido à exortação do apóstolo das gentes: "Alguém pagou alto
preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo" (l
Cor 6,20). Quanto mais dignos, mais edificantes seriam os seus costumes, quanto
mais salutar para a humanidade inteira seria a presença, no mundo, da Igreja de
Cristo! E, se todos os homens secundassem os convites da graça de Deus, que os
quer todos salvos (cf. 1Tm 2,4), porque ele quis que todos fossem remidos pelo
Sangue de seu Unigênito, e chama todos a serem membros de um só corpo místico,
do qual Cristo é a Cabeça, então quanto mais fraternas se tornariam as relações
entre os indivíduos, os povos, as nações, e quanto mais pacífica, quanto mais
digna de Deus e da natureza humana, criada a imagem e semelhança do Altíssimo
(cf. Gn 1,26), se tornaria a convivência social!
13. Era a contemplação desta sublime vocação que S.
Paulo convidava os fiéis provenientes do povo eleito, tentados de pensar com
saudade num passado que fora apenas uma pálida figura e o prelúdio da nova
aliança: "Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da cidade de Deus vivo,
a Jerusalém celestial, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembleia
dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus o juiz de
todos, e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição, e de Jesus,
mediador de uma nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloqüente que o de
Abel" (Hb 12,22-24).
14. Plenamente confiamos, ó veneráveis irmãos, que
estas nossas paternais exortações, pelo modo como julgardes mais oportuno
tornadas por vós conhecidas ao clero e aos fiéis a vós confiados, serão de bom
grado postas em prática, não só salutarmente, mas também com fervoroso zelo, em
auspício das graças celestes e em penhor da nossa particular benevolência, com
efusão de coração concedemos a bênção apostólica a cada um de vós e a todos os
vossos rebanhos, e de modo particular aos que generosa e piedosamente
responderem ao nosso convite.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, no dia 30 de junho
de 1960, vigília da Festa do Preciosíssimo Sangue de N. S. J. C., segundo ano
do nosso Pontificado
JOÃO PP. XXIII
Notas
1. Cf. Enc. Mediator Dei; AAS 39(1947),
p. 54.
2. Cf. AAS,18
(1886), p. 509.
3. Cf. Of f : Festi
SS. Cordis lesu, II Noct., lect. V
4. Carta Enc. Annum Sacrum. Acta Leonis XIII, 19(1899), pp. 71ss.; Carta Enc.Miserentissimus
Redemptor, AAS, 20(1928), pp. 165ss.; Carta Enc. Haurietis
aquas, AAS, 48(1956,), pp. 309ss..
5. Decr. Redempti sumos, de 10 deAgosto
de 1849; cf. Arch. S.C. Rit., Decr. ann.1848-1849, fol. 209.
6. Cf. AAS, 52(1960), pp. 412-413.
7. Decr. S. Poen. Ap., de 3 de Março de 1960; cf. AAS,
52( 1960), pp. 420.
8. Hino Adoro te devote.
9. Bula Unigenitus Dei Filius, de 25 de
janeiro de 1843; Denz. 550 [= DS 1025].
10. In loan., Homil. 46; PG 59,
260-261.
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